Deslembro é uma pequena obra-prima do cinema brasileiro

ASSUNTADO 

 

É possível notar, mesmo sem saber nada de Deslembro, que se trata de um filme muito pessoal de sua diretora, Flavia Castro. Ao perceber que o desaparecimento do pai durante a ditadura já havia sido abordado no documentário Diário de uma Busca (2010), fica claro que ela é movida pela necessidade de recontar essa história. E o mais impressionante é o quanto ela consegue ser bem-sucedida nisso, estirando no registro de ficção. E mais impressionante que o cineasta contar a história da jovem adolescente que é trazida da França para o Brasil na virada dos anos 1970 para os 80, quando começou o processo de anistia política, é realizada com uma vivacidade impressionante.

Nos primeiros minutos de Deslembro vemos uma família dialogando em francês. A menina Joana (Jeanne Boudier, ótima) não quer sair da França e ir para um país em que se torturam e matam pessoas. Mas a mãe (Sara Antunes) prefere que a filha e seus outros filhos (na verdade, um deles filho de seu companheiro com outra mulher) vivam no Rio de Janeiro. O impacto da chegada ao novo país é um choque para a trazer memórias fortes de um momento traumático na vida da pequena Joana em um canto seguro de sua memória.

Assim, essas lembranças – ou possíveis lembranças, já que não se sabe ao certo o que é verdade ou o que é construído como uma espécie de sonho – vão surgindo em flashbacks bem fragmentados. Às vezes, a diretora usa um recurso plasticamente muito bonito de mostrar uma imagem tão próxima que não permite distinguir o está sendo mostrado, como em um quadro de pintura abstrata com textura em alto relevo.

A inclusão de canções é também um acerto do filme. Lou Reed, Caetano Veloso, The Doors, Nelson Gonçalves (em uma canção de Noel Rosa que também aparece no maravilhoso Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa, ainda com um intérprete diferente), citações a David Bowie e Pink Floyd; além do amor pelos livros por parte de Joana e a recitação de um poema de Fernando Pessoa. Tudo isso faz com que a paixão pela vida, embora dolorosa pela falta trágica do pai, esteja o tempo todo presente.

E há ainda o amor no seio familiar. A família mostrada no filme, tão fragmentada quanto as memórias da menina, é de encher o coração (o que só mencionei agora, me desculpe). As cenas de afetividade envolvendo a mãe, o padrasto chileno e os dois irmãos pequenos soam-se à voz da menina que mora no Rio, viúva com brio de Teresa Cristina Giardini. A cena mais tocante do filme, aliás, surge sutil, num momento em que a avó e a menina estão sozinhas e a avó olha com lágrimas nos olhos para o rosto daquela garota que lembra o seu filho assassinado pela ditadura. Um exemplo de sensibilidade ímpar por parte da diretora e de seu belo elenco.

O amor romântico também surge em Deslembro de maneira muito bonita. Há, inclusive, uma cena de sexo muito discreta e muito elegante entre a garota e o seu primeiro namorado, um rapaz que também é músico e divide as experiências e a quantidade generosa de canções pop faz parte do universo do filme.

No que se refere às questões políticas, há diálogo com o momento atual, embora o filme tenha sido finalizado antes das últimas eleições presidenciais. O que não deixa de torná-lo mais forte e urgente nos dias de hoje. Aliás, o que não parece urgente nos dias de hoje, quando o assunto é direitos humanos?

 

Restrito a circuito alternativo, Deslembro infelizmente terá um público pequeno. Por isso, é importante que o boca a boca seja positivo e que atraia o público, para que mais pessoas tenham a honra de ver esta pequena obra-prima no cinema, em toda sua glória.


Julho 2019