CIDADE BAIXA

Cidade Baixa é um longa-metragem, de Sérgio Machado, produzido pela VideoFilmes e lançado em 2005.

 

Sobre o filme:

 

Cidade Baixa é a história de um triângulo amoroso entre os amigos Deco (Lázaro Ramos) e Naldinho (Wagner Moura) e a stripper Karinna (Alice Braga), que se passa na região portuária de Salvador e em outras cidades do estado da Bahia, no litoral do Brasil. O filme segue a trajetória desses três personagens à deriva. Eles buscam no amor a possibilidade de um rumo para suas vidas e são tragados por uma espiral de paixão e sexo, de ciúmes e rancores.

 

Produzido pela VideoFilmes, Cidade Baixa foi exibido na mostra oficial Un Certain Regard, do 58º Festival de Cinema de Cannes, e ganhou o Prêmio da Juventude, que é concedido pelo Ministério da Juventude da França e conta com um júri formado por jovens cinéfilos de vários países da Europa.

 

O filme marca a estréia em longas-metragens de ficção do cineasta baiano Sérgio Machado, que dirigiu o premiado documentário Onde a Terra Acaba e foi assistente de direção de Walter Salles em Central do Brasil, O Primeiro Dia e Abril Despedaçado.

 

Salles (Terra Estrangeira, Diários de Motocicleta) assina a produção executiva do filme, ao lado de Mauricio Andrade Ramos. Para escrever o roteiro a quatro mãos, Sérgio convidou Karim Aïnouz, diretor de Madame Satã, exibido na mostra Un Certain Regard em 2002. A trilha sonora foi composta por Carlinhos Brown, que realizou seu primeiro trabalho para o cinema, em parceria com Beto Villares.

 

Carta de Sérgio Machado para os atores de Cidade Baixa (escrita durante a preparação do filme):

 

É preciso que as pessoas acreditem no nosso filme a cada segundo – se por um momento as pessoas duvidarem de que aquilo é verdade, a gente errou em algum lugar. 

Eu me interesso por filmes que falam de gente e não de grandes eventos – essa história não é uma denúncia sobre as condições de vida das prostitutas ou dos malandros do cais do porto. É uma história de gente como nós, que deseja, sente, ama, sofre, tem tesão, tem medo, chora, tem raiva, goza, é boa e é ruim, é violenta e é plácida…

 

As pessoas – ao menos as mais interessantes e com quem eu tenho mais interesse em trocar – são assim. Santas e putas, anjos e demônios.

 

Acho que a gente deve buscar as contradições dos nossos personagens. Torná-los humanos, dar vida a eles. O período de ensaios vai ser fundamental para isso. O roteiro deve ser tomado como um guia de viagem (a palavra roteiro já sugere isso) – a gente pode e deve buscar outros caminhos, encontrar atalhos ou às vezes até caminhos mais tortuosos.

 

Um dos maiores riscos que corremos é o de cair em estereótipos – A PUTA, O MALANDRO BAIANO. O problema é que esse é um universo fascinante, a ponto de ser uma tentação descrevê-lo – isso seria um erro. Vale repetir: o filme não é uma crônica de costumes, é uma história de pessoas. 

Deco, Naldinho e Karinna é que devem me dizer onde colocar a câmera, eles vão mostrar ao Toca como iluminá-los, ao Marquinhos como deve ser o seu entorno… o filme deve ter o ritmo da batida do coração dessas três pessoas.

 

Naldinho, Deco e Karinna poderiam trabalhar em um supermercado, ser atores de um filme, bater ponto numa grande empresa ou num shopping center. Poderiam ter nascido na Noruega ou na Etiópia. Eles agiriam de um modo diferente, mas poderiam se amar e sofrer do mesmo modo… ou seja, o que é essencial, o que nos interessa realmente se mantém.

 

Estive conversando bastante com a Fátima em São Paulo e fiquei contente em perceber que nós compartilhamos dos mesmos desejos em relação ao cinema. Ela vai ser a melhor aliada nesta busca pela verdade no filme e nos personagens – vai nos ajudar a descobrir o Deco que existe em Lázaro, o Naldinho que existe em Wagner.

 

Contar uma história bem contada já não é fácil, mas gostaria de fazer mais do que isso. Gostaria de falar de sentimentos que são universais, que dizem respeito a cada um de nós. Lealdade, paixão, ciúmes, inveja, coragem, medo, tesão, amizade… Isso é muito difícil, é mais do que fazer um filme, é pular num abismo sem ter medo do que vai encontrar lá embaixo. É acreditar muito um no outro, é se permitir buscar coisas que a gente nem tem certeza que existem.

 

Outro dia eu estava pensando que fazer um filme tem muito que ver com a arte de pular do trapézio – principalmente com o momento em que o trapezista larga a sua barra e tem que acreditar que o outro estará do outro lado pronto para segurá-lo.

 

É isso aí, por enquanto. Vamos pular juntos e rezar para Deus, Oxalá e todos os Orixás da Bahia nos ajudarem nessa jornada. Beijos para todos, Sérgio.

 

DEPOIMENTO DE WALTER SALLES

 

“O Sérgio não é só uma pessoa que ama o cinema, como também alguém que pensa o cinema, e isso pode ser notado no seu filme de estreia. A direção de atores, o uso preciso da gramática, a utilização da música, cada elemento está a serviço de um todo. A estória, a lógica dos personagens norteiam cada decisão. Esse tipo de integridade narrativa é incomum nos filmes de estréia, e nós tivemos o privilégio de ver dois filmes nascerem na VideoFilmes com essa mesma qualidade: Madame Satã e, agora, Cidade Baixa.

 

Foi Jorge Amado quem fez a ponte entre nós. Jorge, que era uma pessoa extremamente generosa, ligou um dia para a produtora para recomendar um jovem diretor baiano cujo trabalho tinha chamado sua atenção. Vi o seu média-metragem de estréia e também fiquei bem impressionado com a maneira sensível com que a estória era contada. Conheci Sérgio e o convidei para trabalhar em um projeto que começava a tomar corpo, que era Central do Brasil.

 

Meus filmes recentes devem muito ao Sérgio. Boa parte do casting de Central, O Primeiro Dia e Abril Despedaçado foi feito por ele. Como assistente de direção desses filmes, sua opinião sempre trouxe luz nos momentos em que eu estava indeciso. Em Abril, Sérgio também foi um co-roteirista valioso, junto com Karim Aïnouz. 

 

Sérgio é alguém que sabe ver e ouvir o mundo à sua volta, que é sensível ao que é intrinsecamente humano – e essas qualidades, esse acreditar, estão na base de Cidade Baixa.”

 

SOBRE A PRODUÇÃO

 

Antes das filmagens, Cidade Baixa passou por um processo de preparação que durou quase três anos, divididos entre pesquisa, roteiro, ensaios e pré-produção. No período de pesquisa, o diretor Sérgio Machado freqüentou por dois meses o universo do filme, que se passa fundamentalmente nas boates de strip-tease, bares e no cais do porto de Salvador, capital da Bahia. Boa parte dos diálogos e das situações do filme são frutos desse período de pesquisa.

 

Para realizar o roteiro de Cidade Baixa, Sérgio Machado decidiu repetir a bem-sucedida parceria com Karim Aïnouz, com quem já havia escrito Madame Satã (dirigido por Aïnouz) e Abril Despedaçado (de Walter Salles). Segundo Aïnouz, tão importante quanto a elaboração do texto foi o processo de conceitualização do filme.

 

“A gente se perguntou muito por que deveríamos contar essa história. E chegamos à conclusão de que queríamos mostrar o triângulo amoroso como um veículo para afirmar a vida. A história nasce do desejo de entender e gostar desses personagens, de dizer que não vale a pena se matar, que é preciso encontrar uma maneira de continuar vivendo”, diz Aïnouz. 

As filmagens aconteceram entre abril e maio de 2004, em Salvador, Cachoeira e outras cinco cidades da região do Recôncavo Baiano, no litoral da Bahia. Todas as cenas foram filmadas em locações, algumas registradas sem nenhuma interferência, outras transformadas de acordo com as necessidades narrativas. 

“As locações determinaram a arte do filme. Nossa principal referência foi a vida nessas cidades. O astral dos lugares e o comportamento estético das pessoas foram incorporados. Parecer simples e natural dá muito mais trabalho que estilizar”, afirma Marcos Pedroso (Madame Satã, Cinemas, Aspirinas e Urubus), diretor de arte do filme. 

Segundo o diretor de fotografia Toca Seabra (O Invasor, Nelson Freire), a principal referência visual de Cidade Baixa foi o livro Laroyê, do fotógrafo baiano Mario Cravo Neto, que retrata o mesmo universo do filme. “O conceito ‘laroyê’ que adotamos necessita de visceralidade simbólica, de sangue, de gozos, de cheiros e suores; ele determinou algumas estratégias de linguagem, como a câmera na mão, a baixa luz e, conseqüentemente, as cores saturadas.” 

Para o produtor executivo Mauricio Andrade, da VideoFilmes, Cidade Baixa foi um filme de logística complexa, apesar da equipe reduzida. “Nós tivemos mais de 70 locações em sete cidades. E houve algumas cenas bastante difíceis de produzir, especialmente as do barco e do navio”, conta. Duas seqüências do filme devem chamar a atenção por seu grau de realismo: a luta de boxe e a briga de galo. Mas, segundo Sérgio, elas foram relativamente fáceis de filmar. A de boxe foi ensaiada como se fosse um balé. Os atores repetiram a mesma coreografia várias vezes, para que ela fosse registrada de ângulos diferentes. A rinha de galos também é totalmente encenada. Na maior parte do tempo, os animais estavam separados e seguros com as mãos, bicando o ar. Com o uso da teleobjetiva, eles pareciam estar brigando. Além disso, a produção colocou silicone nos bicos e nas patas dos galos. Nenhum deles se machucou durante as filmagens, que tiveram acompanhamento do Ibama (órgão federal responsável pela proteção aos animais).

SOBRE A PREPARAÇÃO DOS ATORES

Ao lado do roteiro, a preparação dos atores foi um dos aspectos centrais da produção de Cidade Baixa. Para comandar essa função fundamental, Sérgio Machado convidou Fátima Toledo, conhecida por seu trabalho em filmes como Pixote, de Hector Babenco, Central do Brasil, de Walter Salles, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles.

Antes do início das filmagens, ela realizou ensaios com os protagonistas Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga ao longo de dois meses, primeiro em Salvador, depois em Cachoeira. “Durante o processo de preparação, o nível de entrega dos atores era tão radical que me deixava assustado. Acho que isso só foi possível porque a gente conseguiu criar um clima de confiança absoluta. Isso se acentuou ainda mais durante as filmagens”, diz Sérgio.

O método de Fátima consiste na repetição de uma série de exercícios para despertar nos atores sensações verdadeiras, relacionadas às situações vividas pelos personagens. Entre os principais exercícios usados em Cidade Baixa estão a kundalini, que buscava liberar a sexualidade por meio de movimentos da pélvis, e a valsa, em que os atores se alternavam entre a dança e confronto. “Toda a condução do trabalho é feita para se chegar ao real. A gente buscou a raiva, o desejo, a verdade dos atores, procurou o que havia dos personagens em cada um deles”, afirma Fátima.

Para a preparadora, Cidade Baixa representou uma virada em sua carreira. “Sou contra a criação de vínculos emocionais com atores ou com a equipe. Mas, nesse filme, essa regra do meu método caiu. Houve uma sintonia profunda entre eu, o Sérgio e os atores. Em geral, vejo 90% do meu trabalho impresso em um filme. Em Cidade Baixa, foi 100%. Esse foi um dos filmes mais especiais da minha vida”. A prova disso está no estúdio que Fátima mantém em São Paulo: agora, além das salas Pixote e Brincando nos Campos do Senhor, o local conta com uma nova sala chamada Cidade Baixa.

SOBRE A TRILHA SONORA

Para a trilha sonora de Cidade Baixa, Sérgio Machado queria um som ao mesmo tempo baiano e universal. Assim, surgiu naturalmente o nome do músico e compositor Carlinhos Brown, que circula com a mesma fluência pelas ruas de Salvador e pelos palcos europeus. “Ele me impressiona pela capacidade de estar ligado às raízes musicais baianas sem deixar de estar antenado com o que há de mais moderno no mundo”, diz o cineasta.

Em sua primeira trilha sonora para o cinema, Brown criou músicas a partir do conceito de “Bahia do mundo”, em que o sofisticado e o popular, o tradicional e o contemporâneo se misturam. “O método de trabalho foi colocar o filme para rodar no computador e improvisar em cima das imagens, que já são muito musicais. O resultado foi uma espécie de afro-jazz. Usei instrumentos de percussão que eu mesmo inventei, piano, violão e também instrumentos africanos sagrados. O que foi muito apropriado, porque esse é um momento sagrado para o cinema baiano”, diz Brown.

A trilha de Cidade Baixa é assinada também pelo músico e produtor Beto Villares (Abril Despedaçado), que foi fundamental para dar um formato definitivo ao extenso material produzido por Brown. Ele reprocessou os sons, criou outros novos e ajustou-os às cenas. “Nossa maior preocupação foi não reiterar com a música o que a imagem já estava dizendo. A trilha funciona por contrastes, com sonoridades suaves em momentos de tensão, e assim por diante. A música tem muito mais a ver com a subjetividade dos personagens do que com a ação em si.”